quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

ACORRENTADOS
Paulo Mendes Campos


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

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In O Anjo Bêbado, 1969
Imagem:
Mary Baxter St. Clair

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

 

OS LÍRIOS
Henriqueta Lisboa

Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos — perfeitos! —
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranqüila.

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Henriqueta Lisboa
in A Face Lívida, 1945
Imagens: >
DAQUI

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

CANTAREI O AMOR
JG de Araujo Jorge

Acima de tudo
cantarei o amor

O de Cristo e Confúcio,  o de Romeu e D. Juan,
acima de tudo cantarei o amor.

Em todos os momentos, lascivos ou gloriosos,
mansos ou eróticos,
unindo dois ou arrastando milhões,
nascido da ternura ou da revolta,
procriando seres ou idéias,
acima de tudo cantarei o amor.

O amor
- cimento e força -
que constrói e ilumina
que convoca e conquista,
- bola de neve do Bem inevitável -
acima de tudo cantarei o amor.

E o tirarei do coração
como a hóstia do cálice
ou o sol, da manhã,
ou a espada, da bainha,
- fulcro para a alavanca do meu verso
mover o mundo -

acima de tudo cantarei o amor.

barrinha_1
JG de Araujo Jorge
In O Poder Da Flor, 1969

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

SERENA
Henriqueta Lisboa

Essa ternura grave
que me ensina a sofrer
em silêncio, na suavi-
dade do entardecer,
menos que pluma de ave
pesa sobre meu ser.

E só assim, na levi-
tação da hora alta e fria,
porque a noite me leve,
sorvo, pura, a alegria,
que outrora, por mais breve,
de emoção me feria.

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In Azul Profundo, 1950-1955

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

PORQUE
POESIA: Sophia de Mello Breyner Andresen
Música e Interpretação: Francisco Fanhais


PORQUE

 
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
 
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
 
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
 
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


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In No Tempo Dividido e  Mar Novo, Edições Salamandra, 1985
Fonte do Vídeo
terça-feira, 17 de janeiro de 2012

AMOR PACÍFICO E FECUNDO
Rabindranath Tagore


Não quero amor
que não saiba dominar-se,
desse, como vinho espumante,
que parte o copo e se entorna,
perdido num instante.

Dá-me esse amor fresco e puro
como a tua chuva,
que abençoa a terra sequiosa,
e enche as talhas do lar.
Amor que penetre até ao centro da vida,
e dali se estenda como seiva invisível,
até aos ramos da árvore da existência,
e faça nascer
as flores e os frutos.
Dá-me esse amor
que conserva tranquilo o coração,
na plenitude da paz!

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In O Coração da Primavera
Tradução de Manuel Simões

Imagem da Internet via Google

domingo, 15 de janeiro de 2012

ANOITECER
Cassiano Ricardo

Homem, cantava eu como um pássaro
ao amanhecer. Em plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?

Então, inventei as palavras.
E as palavras pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.

A realidade, assim, ficou com tantos rostos
quantas são as palavras.

E quando eu queria exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam em mim, obedientes
ao meu menor aceno lírico.

Agora devo ficar mudo.
Só sou sincero quando estou em silêncio.

Pois, só quando estou em silêncio
elas pousam em mim - as palavras -
como um bando de pássaros numa árvore
ao anoitecer.

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Imagem: Foto de Sérgio Vale/Secom

 

Cassiano Ricardo (Cassiano Ricardo Leite)
Brasileiro, Jornalista, poeta e ensaísta
Nasceu 26 de julho de 1895 - São José dos Campos, SP
Faleceu: 14 de janeiro de 1974 (78 anos) - Rio de Janeiro, RJ

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