domingo, 21 de fevereiro de 2016
Arte: Arkady Ostritsky (Russian)

AMO-TE SEMPRE
Vítor Matos e Sá


Amo-te sempre
com um pouco de barco e de vento
com uma humildade de mar à tua volta
dentro do meu corpo; com o desespero
de ser tempo;


com um pouco de sol e uma fonte
adormecida na ternura.


Merecer este minuto de palavras habitando
o que há sem fim no teu retrato;
Este mesmo minuto em que chegam e partem navios
- nesta mesma cidade deste
minuto, desta língua, deste
romance diário dos teus olhos -


(e chegarão com armas? refugiados? trigo?
partirão com noivas? missionários? guerras? discursos?)


Merecer a densa beleza do teu corpo
que tem água e ternura, células, penumbra,
que dormiu no berço, dormiu na memória,
que teve soluços, febre, e absurdos desejos
maiores que os braços,


merecer os dias subindo das florestas - e vêm
banhar-se, lentos, nos teus olhos...


Merecer a Igreja, o ajoelhar das palavras,
entre estes cinemas visitando, em duas horas, a alma,
estes eléctricos parando atrás do infinito
para subirem os namorados, a viúva, o cobrador da luz, a
costureira
entre estes homens que ganham dinheiro, sangue frio, ou vícios,
    ou medalhas
e estes telefones roubando a lealdade dos olhos...


Teus cabelos cheirarão ainda a infância
e a vento, depois de passarem por esta fome pública,
estes olhos com regras de trânsito, estes dias sujos,
estes lábios que já não ensinam o pomar
ou a fonte, nem têm gosto de leite e de aurora,
depois destes olhos cheios da pergunta de estarem vivos
em vão?


Merecer honradamente este poema, todos os poemas,
como quem parte, entre os dedos a brancura
quente de um pão!

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Vítor Matos e Sá
In Esparsos

Sobre o autor:
Vítor Matos e Sá é o pseudônimo de Vítor Raul da Costa Matos. Nasceu em Maputo, antiga cidade de Lourenço Marques, em 1926, e faleceu em Espanha em 1975. Licenciou-se e doutorou-se em filosofia pela Universidade de Coimbra tendo sido diretor do Instituto Filosófico da mesma universidade. Entre 1964 e 1970 fez vários estágios na Inglaterra. Colaborou, como poeta, na Távola Redonda, na Árvore, nos Cadernos do Meio-Dia, entre outras obras.

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